Editorial: Vale a pena vencer a qualquer custo?

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Quando disse a frase que virou lugar comum, “o importante é competir”, o Barão Pierre de Coubertin provavelmente não teria ideia do tamanho que o esporte seria como indústria mundial. Era uma época de profissionalismo incipiente e de um amadorismo considerado por muitos romântico. Pouco antes de sua morte, em 1937, Coubertin viu o esporte virar propaganda ideológica nos Jogos de Berlim, 1936, e um mito, Jesse Owens, derrubar a tese dos nazistas alemães. Mas não é disso que falaremos exatamente e sim dos problemas de querer vencer a qualquer custo.

O profissionalismo no esporte ajudou a deselitizá-lo. Atletas talentosos passaram a poder viver disso. Antes, era algo restrito a uma elite ou a alguém que levasse um estilo de vida naturalmente propício a alguma modalidade, como o polivalente Jim Torphe, descendente de indígenas americanos (que por décadas foi ostracizado por receber trocados para jogar beisebol e futebol americano semiprofissionalmente), ou o pastor-maratonista grego Spiridon Louis.

Por outro lado, onde entra dinheiro, entra outros interesses, sejam puramente financeiros ou políticos. Infelizmente não são raros os casos de atletas que cruzaram a fronteira do lícito e do ilícito para vencer a qualquer custo e ganhar dinheiro e fama, logrando os que competiram honestamente e pararam na limitação de seus corpos ou equipamentos.

Aí lembramos os casos do jamaicano naturalizado canadense Ben Johnson e o primeiro grande escândalo de doping, da também velocista norte-americana Marion Jones, banida e com várias medalhas devolvidas após confessar doping contumaz durante a carreira. E lembramos o impressionante caso de dopings em massa no esporte russo antes dos Jogos do Rio, 2016, e o caso de Lance Armstrong, que de ídolo do esporte, terminou desmoralizado ao ter estado dopado em seus sete títulos, todos cassados da Volta da França. A verdade nestes casos vieram à tona, seja por testes feitos na competição ou feitos anos depois com amostras congeladas, medida importante, pois houve em certo momento a humildade das autoridades de esporte em admitir que o doping está uma geração na frente do antidoping, sendo assim, é sempre preciso, depois de certo tempo, reanalisar as amostras com as novas tecnologias existentes.

E a imprensa onde entra nisso?

Os limites da licitude no esporte não são extrapolados apenas quimicamente com o doping. Muito do que foge nos laboratórios, pode ser descoberto pela imprensa, como a “Fábrica de Gatos” de Marabá, descoberta pelo jornalista André Rizek, na Revista Placar em 2007, em que descobriram-se nove jogadores com idade adulterada na base corintiana, devidamente afastados, vindos todo de um mesmo empresário e todos registrados no interior do Pará com documentação que os rejuvenesceram. Idade no futebol de base faz muita diferença, principalmente física.

Mais ousada foi a história do jornalista espanhol Carlos Ribagorda que, diante da suspeita de atletas sem deficiência intelectual no basquete paralímpico para deficientes intelectuais da Espanha, conseguiu se infiltrar na equipe, disputar as Paralimpíadas de Sydney, em 2000, e desmascarar o esquema na Revista Capital: dos doze demais atletas, outros dois não tinham deficiência alguma. Ribagorda conseguiu entrar na equipe apenas com exames físicos e sem passar por análise classificatória séria que seria capaz de identificar que não tinha deficiência alguma. Depois de ser campeã, a Espanha teve de devolver as medalhas e o desporto para pessoas com deficiência intelectual precisou ser completamente reformado para evitar novas fraudes.

Se não fosse a imprensa e o faro de repórteres, essas coisas estariam acontecendo com maior frequência (não tenho a utopia de acreditar que tenham cessado completamente). Por isso é importante termos gente cobrindo eventos, envolvidos em maior número de eventos e modalidades possíveis, realidade que, infelizmente ao menos no Brasil, tem ficado cada vez mais improvável, com o sucateamento dos nossa imprensa, que passa por uma encruzilhada do ponto de vista financeiro de modelo de negócio. Não é fácil ser jornalista hoje no Brasil e jornalista desempregado virou quase uma redundância.

Onde queremos chegar com isso?

Mesmo no esporte não estritamente profissional, fraudes podem acontecer.

Primeiro é preciso explicar que, apesar do nome e das tags “Futebol Amador”, o que cobrimos in loco, poderia ser classificado mais precisamente como semiprofissional ou apenas não-profissional. Em boa parte dos clubes, os atletas recebem um ajuda de custo por partida. Alguns clubes pagam até muito bem e conseguem assim atrair atletas com nível de futebol profissional e alguns ex-profissionais que querem estender a vida útil jogando futebol. Esse universo também é muito útil para atletas que buscam profissionalização tardia, seja por falta de chances nas bases de clubes maiores ou por simplesmente estarem longe dos radares dessas equipes, ou ainda para jogadores e técnicos que buscam uma segunda (ou até terceira) chance. Não há nada ilícito nas ajudas de custo e isso é inclusive permitido nas leis esportivas brasileiras que caracterizam o esporte amador (a lei brasileira não dá muito meio-termo entre o profissional de fato e o amador completo, diferente de muitos países que a lei caracteriza contratos part-time ou ainda permitem mescla de jogadores de diferentes status contratuais num mesmo time ou campeonato).

Sendo assim, por menores que sejam as cifras, pode acontecer de gente que transgrida as regras para levar vantagem e vencer a qualquer custo. É missão da imprensa, por menor que seja, caso deste Futebol Metrópole, um exército de um homem só, ao detectar as suspeitas e ter possibilidade de provas, investigar e, caso realmente exista alguma irregularidade, e esta bem documentada e com provas contundentes, denunciar. Foi assim na última semana com o caso dos jogadores com identidade falsa do Capão Raso. E espero que assim seja com os diversos veículos que cobrem as competições como os jovens do Do Rico Ao Pobre e do Gol de Pauta, os mais experientes do Balançando a Rede, da Rolando a Bola, Talentos na Bola, Amador Esportivo, J Maia, Levi Mulford (nosso digníssimo decano) e das rádios Capital Sul FM, Cultura, Barigui e demais que aparecerão por aí (e outros que eu tenha esquecido nesta segunda-feira cefaleica).

A suspeita começou junto com a suspeita levantada pelo delegado daquela partida no Parque Linear, Francis Bacon. Ela casou com a bizarra relutância da equipe do Capão Raso em tirar foto posada e no estranho procedimento de atrasar o máximo possível a entrada em campo no primeiro tempo. Quando a foto saiu no intervalo, ao editar em casa, e todo o episódio decorrido daquela tarde, a suspeita ficou maior com a foto posada com vários atletas de cabeça baixa, como se estivessem escondendo algo. Detalhe que o jogo estava sendo vencido de virada pelo Capão por 2 a 1 (o placar final foi de 3 a 3). Um time vencendo de cabeça baixa? Outro episódio suspeito foi a presença do (bom) volante Kairo nas duas partidas, mas na primeira sob o nome de Carlos Eduardo. Este último foi o estopim de que era necessário ir a fundo na história que depois ganhou a informação de que o Wagner Holanda Martins na artilharia era o famoso Sabonete, que está com braço quebrado, e não o rapaz que bateu bem na bola e fez dois gols lá na borda extrema do Cajuru.

É um vespeiro? Com certeza. Pode ter acontecido com outros clubes e em outras categorias? Bem provável, pois na base e em jogos de Segunda Divisão Amadora poucos atletas são conhecidos. Pode voltar a acontecer? Não duvido, porém, agora, esperamos que utiliza desta manobra pense duas vezes, pois as chances de serem pegos é maior, pois acredito que mais gente fique de olho.

O triste é que uma manobra dessas irá manchar o nome de uma agremiação vitoriosa e com história como é o Capão Raso, o Tricolor de Aço, para muitos sinônimo de time amador de Curitiba no bom sentido, no sentido de tradicional, uma marca registrada de sua região, casa de craques do passado e do presente. Mas a tristeza deve ser pelos torcedores do clube, que estão entre os maiores prejudicados, junto com as demais equipes que tomaram parte da Copa de Futebol Amador, e do desporto como um todo.

Alguns irracionais poderão até culpar a imprensa, mas a culpa não é do mensageiro. A culpa é de quem teve a ideia de colocar jogadores não registrados sob a identidade de registrados, de quem executou e de quem se sujeitou a entrar em campo, por mais que tivesse a ajuda de custo envolvida. São pelo menos três atletas de boa qualidade técnica que podem ter algumas portas fechadas por toparem entrar nesta barca.

Sinceramente, o Capão Raso poderia ter tido uma de duas atitudes que poderiam trazer menos transtornos futuros para o clube, diretoria, comissão técnica e os atletas. A primeira seria escalar os donos dos cartões ou pelo menos oito deles e jogar. Caso não tivesse condições físicas, era só comunicar depois de um saída de bola e o jogo terminaria, caso não terminasse no tempo regulamentar, com 3 a 0 para o adversário, sem problema de pontos perdidos depois. Soa feio um cai-cai? Soa, mas seria transparente mostrar que não tinha a combinação de atletas em condições e registrados e tecnicamente evitaria o WO. A outra seria entrar com todos os atletas com nomes verdadeiros, podendo usar o RG no lugar dos cartões, já ciente que iria perder pontos. Evitaria o WO, não evitaria perda de pontos, mas não teria chances de problemas futuros de suspensão de atletas, dirigentes e membros de comissão técnica. No entanto, o clube resolveu fazer as coisas do jeito mais perigoso para a instituição, talvez acreditando que nada pudesse acontecer. Uma lástima.

Por outro lado, é a prova inconteste de que a presença de imprensa, além de ajudar a trazer público e renda aos clubes (gente que consome nas lanchonetes, gente que quer camisa ou que vai na reta final quando pode haver cobrança de algum ingresso), pode ajudar a fazer que o esporte tenha mais lisura, por mais que o processo de depuração possa ser por muitas vezes doloroso. Por isso a pergunta-título: “Vale a pena vencer a qualquer custo?” A resposta é de vocês, é minha e é de todos.

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